Desde criança que visito o sítio Tambor e arredores, a Mumbuca, lugarejo ancestral de meus familiares, território sentimental que dá sentido à nossa existência.
Das garatujas infantis às conversas familiares, duas histórias sempre me tomaram de assalto, uma se refere a uma “pedra do letreiro”, nome comum dado a rochas que contém inscrições que são indecifráveis para o homem do campo, e a outra contava a presença de uma gruta oculta na mata com uma fonte de água, a Gruta do Pinga ou ‘o Pinga’, como alguns se referem. Mas pelo tom das conversas, a Gruta não era coisa de criança, e aquela história adormeceu nas gavetas empoeiradas de minha memória, até que em 2005, já na faculdade, estive na casa de Tia Judite e lembrei, pedindo para que me contassem o que sabiam.
Marcelo de Zeza, meu primo mais velho naqueles rincões, disse ter estado apenas uma vez no lugar e fazia muito tempo, não sabia se conseguia chegar. A Pedra do Letreiro é bem mais próxima, sabe muito bem onde é, até já havia amarrado uma burrega perto, mas o Pinga. O desafiei a ir tentar me mostrar onde seria o lugar, ele topou. No comecinho da caminhada, avistei a imensidão da Serra do Maracajá e o verde que tomava conta do arvoredo, era época chuvosa, momento mais delicado para uma investida na mata e mais às cegas. Não pestanejei e fomos. O caminho carroçável acabara na última residência, na descida para o vale. Uma paisagística suprema, uma caatinga exuberante, cheiro forte de jurema, do marmeleiro, umidade alta, clima ameno e a descida até o vale proporciona alguns escorregões, parte de terra molhada, folhas e galhos também e ali fomos abraçados pela encosta sul da Serra. Apesar de subi-la todos os meses para levar as compras de Zé Severino, meu bisavô, tudo era novo para mim, pois sempre ascendia pela porção norte, próximo a antena de transmissão e chegava de carro no terreiro de Vovô.
Fomos de um lado para outro por mais de uma hora e vendo a impaciência do primo, resolvi abortar a expedição e retornar. Foi prudente, não iríamos encontrar. Sequer enxergamos residências, lugares em que poderíamos ter informações.
O geólogo da Inspetoria de Obras Contra as Secas-IFOCS (atual DNOCS) Luciano Jacques de Moraes escreveu em 1924 o livro ‘Serras e Montanhas do Nordeste’ em dois volumes, um verdadeiro tratado geológico dessas terras. Nele, afirma ter encontrado a gruta do Pinga: “formada pela sobreposição de blocos deste gneiss[porphyroide cinzento]. Num rochedo do mesmo gneiss, existem inscripções a tinta encarnada, compostas principalmente de traços inclinados, das quaes mais adiante trataremos”. E tratou mesmo em uma obra específica: ‘Inscripções rupestres no Brasil’ publicada também pelo IFOCS no ano de 1924, onde afirma: “Tivemos oportunidade de examinar inscripções nas seguintes localidades: Pinga, na fazenda Mumbuca, a 22 km a oeste de Campina Grande” e curiosamente não faz um levantamento das inscrições, como o fez nos outros sítios arqueológicos visitados: “Conseguimos copiar alguns dos mais expressivos caracteres em todos esses letreiros, excepto no de Pinga”. Detalhe é que entre 2006 e 2010, estive no lugar algumas vezes, duas delas compondo a equipe da Sociedade Paraibana de Arqueologia, e nada de pintura rupestre foi encontrada. Até um retrato tiramos no mesmo lugar em que o geólogo e sua equipe foi fotografada décadas antes, no que induz indubitavelmente que aquele é o lugar.
A Gruta do Pinga é um aprazível lugar formado por blocos sobrepostos formando galerias e pocinhos de onde milagrosamente brota um veio d’água. A área é cercada de misticismo, são muitas as histórias que são avivadas principalmente pelos camponeses mais longevos. Um dos moradores da região, Arlindo Marinho de Alcântara (Seu Arlindo) afirmou que havia uma moça de pele trigueira, cabelos negros bem compridos e olhos de mel, ela buscava constantemente água na gruta até que em um certo dia de sol ela se sentou ao lado de uma poça d’água onde se pintava com uma tinta preta. Tempos depois um caçador quis mexer com ela.Naquele momento, ela foi andando de costas lentamente para o interior da gruta e se encantou, ninguém a viu novamente. Isso foi no tempo antigo. Desde então, uma cobra apareceu nas locas. Dizem que é a moça que está encantada e de vez enquanto aparece alguém aí no terreiro dizendo que viu a serpente.
Segundo o folclorista Câmara Cascudo, a tradição das Cobras Encantadas permeia quase todo o Brasil e o mistério da Gruta do Pinga se refere a mais uma lenda de encantamento. Segundo a tradição, há a necessidade de uma força maior para a quebra do encanto, garantindo a restituição da forma humana da moça.
Foi estranho o geólogo Luciano Jacques não copiar as inscrições, assim como fez nos outros sítios visitados, e é também estranho a dificuldade de encontrar esses testemunhos ancestrais. A Gruta do Pinga ocultou não só a moça (que pela descrição era indígena) a transformando em cobra, como também sepultou esse testemunho ancestral que agora torna-se um hiato nos estudos arqueológicos parahybanos.
Thomas Bruno Oliveira
Historiador e Jornalista - 3372-PB
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